quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O fim da humanidade (seria meu sonho?)

 Não vou reescrever este livro. Não vou mudar nada. Nem as palavras, nem o tom. Nada do que eu escrever será apagado, ainda que eu me arrependa. Faz parte da vida fazer merda e esse livro é uma grandessíssima merda.

Amanheci o dia como tenho amanhecido há muitos dias: desgostosa. Sou linda (gosotosa pra caralho, puta mulherão da porra!), saudável e, como dizem, devia ser grata por estar viva. Tenho uma tatuagem no punho esquerdo que diz "nobory said it was easy", mas, porra... Ninguém disse que eu ia me foder tanto.

Não estou reclamando do que tenho na vida. Estou reclamando da vida em si. Quem escolheu essa merda? Por que diabos tomaram essa decisão por mim? Por que eu tive que vir a esta festa de merda? Alguém pensou que eu poderia não querer estar aqui? Não. Foda-se essa garota, a decisão é nossa.

Queria fingir que não sei do que estou falando. Mas eu sei. Estou falando dos meus pais. Estou falando da péssima decisão que eles tomaram ao me trazer para esse mundo. E não acho que seja uma decisão ruim porque sou tóxica e amarga. Acho uma puta duma decisão ruim do caralho amar alguém e, apesar disso, querer que ela viva no inferno que é a humanidade; só para você dar corpo à sua vaidade de ter uma prole.

Mas que merda mórbida. Adorei. Conta mais.

Essa sou eu falando comigo mesma. Demorei 29 anos para escrever um livro e decidi fazer isso em um dos piores dias. É sempre assim, sempre assim que tomo a decisão de escrever.

Estou num daqueles dias comuns na minha vida, em que acordo pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo. Tive um sonho ótimo e ia tudo bem, até que decidi ver um filme na Netflix antes de levantar da cama e ser útil para alguma coisa. Escolhi mal. Ou melhor, escolheram mal por mim, como sempre. Eu tinha dito querer ver "As vantagens de ser invisível" (jurava ser um filme de comédia) e meu marido quis me agradar me trazendo café na cama - as rosquinhas de coco que pedi, o pão com maionese que foram uma ótima ideia dele, e café puro como de costume - e colocando o filme que eu queria ver. Merda! Merda, merda, merda de decisão ruim. Não era um filme de rir. Era uma daqueles filmes de chorar. Merda, merda, merada!!! Eu estava segurando estas lágrimas há semanas.

Há semanas eu me convencia de que seria besteira chorar por exatamente nada. Nada mesmo, chega a ser patético. Que inferno é esse? Tá bom, estou meio fodida de grana. Gastamos mais do que podemos pagar e eu (sempre) coloco a culpa disso no meu marido, já que minha cabeça e coração são bons em me convencer de que faço tudo certo na maior parte do tempo. Mas, no geral, estamos bem. Tenho saúde, tenho um emprego, tenho um teto sobre minha cabeça, e tenho grana suficiente para não passar fome e para poder tomar um banho quente. Que caralhos! Tenho internet, pelo amor de Deus! O que mais eu poderia querer?

Nada. E essa deve ser parte do problema. Não quero nada. Como pode uma pessoa viver sem sonhar? - algum poeta já deve ter escrito isso. Pois olhem para mim. Eu sonho, claro, mas somente aquele tipo de sonho de quando se dorme. Eu fecho os meus olhos, fico inconsciente e, então, me vêm imagens à cabeça, Quando durmo, entende? Eu não sonho quando estou acordada, daquele tipo de sonho que se confunde com ambição. Eu somente sonho aqueles sonhos que se confundem com alucinação. Daqueles que somem se você tomar um remédio forte o suficiente.

Me perdi. Tive que voltar ao fim do parágrafo anterior para lembrar de que estava falando. Confesso: estou levemente bêbada. Mas hoje eu mereço.

Meu marido têm feito umas comidas diferentes por estes dias. Hoje fez salmão, em cama de shimeji e cebola, ao forno. Ficou deliciosos. Daí tomamos vinho branco meio seco e cá estou: alcoolizada. Pela tarde ele me convenceu a sair da cama. Acordamos tarde, por volta das onze da manhã. Depois do filme, quando a compulsão por chorar me tomou, queria ficar sozinha por 5 minutos, mas não disse nada a ele. E ele, que não tinha como adivinhar, ficou sentado aos meus pés, dizendo coisas que deveriam fazer com que eu me sentisse melhor. Lembro dele me perguntando se o amo. Sim, amo.

É errado sentir pena de quem tenta te fazer feliz?

Ele é bom nisso, sabe? Agora mesmo, está do outro lado do monitor, em seu próprio computador, no Twitter eu acho, concentrado e lindo. Há pouco me perguntou o que eu estava fazendo, genuinamente interessado e provavelmente preocupado com o volume de digitação. Ele sabe que não estou nas redes sociais. E ele sabe que não digito coisas boas rápido assim. Provavelmente não vai me dizer isso. (Eu ia escrever "obviamente", mas, vai que... Ele vive me surpreendendo, afinal). Só escrevi essa parte porque acho que ele vai acabar lendo. Não quero parecer ingrata.

Me perdi de novo.

Lembrei. Estava dizendo que hoje cedo tive uma crise tremenda. E tive que ser convencida pela pena a me levantar da cama. "Pena de si mesma, Sílvia?". Definitivamente, não. Pena daquele rosto, não sei, preocupado? Incrédulo? Envergonhado? Não sei mesmo. Mas tive pena do rosto do Rubens. Ele estava tentando me fazer sentir bem/parar de chorar/levantar para ir ao mercado. Sim, era assim que os pensamentos passavam na minha cabeça. Fiquei tão incomodada com tantas possibilidades e com a vergonha de estar ali reclamando de uma vida relativamente boa, que resolvi me levantar.

Pedi para ele me deixar tomar um banho. Queria aqueles meus cinco minutos de solidão para poder chorar sem timidez. Não tive. O choro. Não tive o choro. Tive cinco, quinze, sei lá, vinte minutos de solidão (solidariedade). Mas não tive lágrimas.

A água reorganiza meu pensamento. Meio doido isso. Mas chuva e banho me reorganizam. Ridículo. A água salgada poderia descer enquanto a água doce descia, mas meu corpo não quis. Meu cérebro não quis. Eu quis, mas o resto e mim não quis. Daí não chorei. Fiquei lá, sob a água, me obrigando a pensar naquelas mazelas que tinham me feito desmanchar há minutos atrás. Nada. Nenhuma gota além das providas pela Sabesp.

Patética!

Há pouco o Arthur me ligou. Arthur Teles. A voz dele está mais "viada" do que eu me lembrava. Me ligou porque eu fiz um discursinho suicida nas mensagens que mandei pelo Whatsapp. Eu também teria ficado preocupada. Mas, com toda a certeza, não teria ligado. Sou esse tipo de péssima amiga que não gosta de falar ao telefone.

A tarde, assim que tomei banho, saí pela casa nua, com a toalha enrolada na cabeça para secar os cabelos. Pensei em uma foto que ficaria muito boa. Apaguei a luz do quarto e testei a câmera capturando algumas imagens de mim mesma com o celular, até que uma delas ficou como eu tinha imaginado. Mostrei para o Rubens. Postei. 

É engraçado. Eu tinha pensado no Rony quando estava vendo aquele filme idiota. Pensei que, como péssima amiga que sou, há meses não falava com ele. Aquele medo doido de ele ter precisado de mim nesses últimos tempos e eu não ter estado lá pra ele. Vou ser sincera:  medo de ele ter se matado. Eis a graça: ele reagiu à minha foto seminua. Ele e o Franklin. Deu raiva. Sim. Mas que merda.

No fundo, não faz mal ao ego receber um "biscoitinho" de vez em quando. Mas, porra!, achei que ele podia ter se matado. E bastou a possibilidade de uma teta para ele reaparecer? Não me exime do fato de ser uma péssima amiga, mas não posso negar que estou cercada por tarados filhos da puta. 

Vou voltar para reler o que já escrevi. Narrativa mórbida, aposto.

Não, até que ficou engraçado. Ninguém vai entender nada, nem eu no futuro, mas achei graça agora. Álcool? Talvez...

De volta às mazelas: 

Caramba, que doida! Fui fazer xixi e voltei de lá com um enredo de novela. Na cena eu brigava com meu sogro por ele aceitar a nudez de mulheres dos pornôs, mas não aceitar minha nudez na foto que postei pela manhã. "- Mas elas são atrizes" - ele disse. "- E quem disse que eu não sou? - digo com a sobrancelha arqueada". Minha cabeça, definitivamente, precisa de uma reforma. 

Vamos lá, de volta as mazelas: por que a humanidade existe? Era nisso que eu estava pensando quando comecei a chorar pela manhã. Assim: "que tipo de deus permite que uma espécie destrutiva, nociva, odiosa continue vivendo no topo da cadeia alimentar?" Eu realmente odeio a humanidade - inclusive o fato de ser parte dela. Eu acredito que não temos nada de bom para oferecer ao planeta, que ele estaria melhor sem nós. Eu considero todas as pessoas modernas que desejam conceber filhos biológicos uns filhos da puta mesquinhos e inconsequentes. Sim, eu os julgo e com o ferro que os firo, ei de ferir a mim mesma. Acredito que a humanidade tem que acabar. Acredito que isso seja a coisa óbvia, a resposta para todas as perguntas. E não consigo compreender quem pensa que ainda há salvação. "Estúpidos!", é como eu chamo as pessoas que dizem que um dia vou querer ser mãe porque, com o tempo, toda mulher acaba querendo ser mãe. Que inferno. Vou poupar sei-lá-quem estiver lendo esse livro da minha militância ignorante, mas: por que diabos essas pessoas ainda acreditam na proliferação de uma espécie idiota dessas?

Fiz essa pergunta nas minhas redes sociais. Letras miúdas naquela minha foto "conceitual". A Vitória respondeu como o esperado; tivemos esta conversa há algumas semanas. A Iris respondeu de maneira sensata. Rony e Franklin responderam, com seus paus na mão, o vislumbre de uma teta desnuda, não à mim. Arthur me ligou. 

Estou ficando com sono. Sei que, quando levantar daqui, nunca mais vou voltar. Sou assim: eu desisto das coisas. 

"A Terra toda é uma ilha (...) meu radinho de pilha". É a parte que ouvi da música que está tocando. "Não há pranto que afague" e algo sobre os olhos e sobre um farol. Sabe Deus por que resolvi escrever isso.

Falando em Deus: essa foi mais uma coisa que passou pela minha cabeça durante meu pequeno surto de hoje cedo. "Deus não existe", pensei olhando para a pena do Rubens, que me dizia como acabou acreditando em Deus e em suas "sábias decisões" após uma adolescência ateia. Sim, doido assim. Tive que me esforçar, agora, para lembrar como cheguei a essa conclusão. Um planeta tão lindo, tão incrível, tão fantástico não merece a humanidade e, se Deus existisse, saberia disso. A humanidade é tóxica. Se eu fosse deus, eliminaria esse erro. 

Estava olhando para o gato no meu colo enquanto devaneava sobre a morte do deus conhecido e tentava me concentrar na fé motivacional do meu marido. Eu realmente não queria que o Rubens lesse isso em meus olhos. Não quando estava se esforçando tanto para dizer algo que me fizesse sentir bem. Agora, pensando que ele pode ler isso a qualquer tempo, achei meio vão não ter olhado-o nos olhos. 

Hoje cedo, como há semanas, estive pensando em como seria fácil desligar minha cabeça, fazê-la calar-se. Morrendo. O melhor amigo do garoto do filme deu em sua própria cabeça um tiro. Seria fácil assim se não fosse necessária (primeiro uma arma e, segundo) tanta coragem. Coisa que não tenho. Fico pensando em quanta merda as pessoas pensariam se eu desligasse minha própria cabeça agora. Minha mãe, por exemplo, egocêntrica como é, acharia que não fez um bom trabalho como mãe e, por chorar tanto e ficar fazendo dramas e barracos por causa da vida nova do meu pai, me deixara desgostosa ao ponto de querer me matar. Faria sentido, então, não posso culpá-la. Meu irmão, crítico como é, passaria o resto da vida pensando em como fui idiota de escolher o inferno pelo suicídio, ao céu pelo mártir; em como faria o mesmo por ter uma vida de merda, mas jamais escolheria isso por não ter a audacidade necessária. Meu pai... Meu pai ficaria puto por não conseguir construir uma história bonita sobre como morri; não tem como embelezar um suicídio. Ele, provavelmente, não contaria a ninguém que estou morta.  Meu marido voltaria derrotado para a casa dos pais, culpando-se por não ter conseguido me convencer a ficar, internalizando o rancor por eu não ter pensado nele antes de fazer isso; dizendo a si mesmo que, a partir de agora, se nada desse certo em sua própria a vida, seria culpa do trauma de ter me perdido tão tragicamente. A Vitória afundaria ainda mais e culparia-se por não ter feito mais, por não ter me aconselhado mais, por não ter percebido, por seja lá que merda ela puder inventar para sentir que tem relevância no que for de mim.

Em suma, se eu resolvesse dar-me de presente um tiro na cabeça, partiria sabendo que foderia com a cabeça de uma galera. Só por isso me foge a coragem. Quando paro na calçada e vejo os carros passarem pelo sinal verde, ligeiros para não perderem o próximo segundo, e não pulo em frente a um deles, é nisso que estou pensando. Quando encaro um desconhecido a minha frente, planejando atacá-lo em defesa de mim mesma e perdendo a luta na ponta de uma faca ágil, perco a coragem ao imaginar quanta merda deixaria para trás.

Quando estou mal, quando estou triste, é comum que pensamentos violentos venham até mim. Tenho um tesão pela ideia de matar alguém. Nunca atoa. É sempre alguém mau, um estuprador, um pedófilo, um ladrão que me aborde num dia ruim, um filho-da-puta-peso-morto-sustentado-pelo-poder-público. Ou meu chefe burro. Acabo de me lembrar que já planejei incendiar uma boa pessoa só por não ser esperta como eu esperaria de um chefe meu.

Intitulei esse texto antes de começar a escrever. Acabei de ler e está ridículo. Claramente estava "idiotamente-bêbada" quando escolhi dar o nome de "Um dia de lágrimas e gatos" a esse texto mórbido. (Risos internos).

Enquanto planejava rir de mim mesma no último parágrafo, Rubens me abraço e perguntou se poderia ler tudo isso aqui.

- Se você quiser...

- Eu vou quer.

- Está bem mórbido.

- Como sempre. Escritora depressiva.

Mentindo ele não está. É só que eu nunca me imaginei escrevendo sobre suicídio. Cara, minha vida é boa, sabe? Eu não quero realmente me matar. Eu só quero 1) desligar minha cabeça e levá-la para o escuro-silencioso ou, 2) deixar de existir. É que parece meio drástico, mas não é realmente.

Agora o álcool se foi e estou voltando a me sentir patética. Já esqueci por que comecei a escrever isso aqui. 

Já chega. Meia-noite e vinte e dois minutos. Hora desse neném gostoso e de unhas pintadas ir para a cama. Eu ia dizer "volto depois", mas estou cansada de mentir para mim mesma só para parecer menos inútil. Só falta mudar o título. Quão mórbida consigo ser? Vejamos...

Meia-noite e cinquenta e dois minutos: terminei de revisar o texto. Como prometido, nada foi apagado. Só minha dignidade (risos internos).